BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS
O português Boaventura de Sousa Santos foi o grande premiado na categoria Ciências Humanas
e Educação do Jabuti, com seu livro Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática, primeiro volume da série A crítica da razão indolente (CortezEditora).
O prêmio é uma mostra da crescente influência desse sociólogo da
Universidade de Coimbra no universo intelectual brasileiro. Boaventura, que na
década de 70 passou cinco meses na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro,
para fazer sua tese de doutorado por Yale, já está com viagem marcada para o
Brasil no próximo mês. De tanto visitar o país, é capaz de analisar como poucos
brasilianistas sua realidade social. Mesmo assim, está chocado com a ameaça de
racionamento de energia e de apagões. "O que mais me surpreende no Brasil
é a falta de contestação social a essas coisas. Parece que hoje em dia os
brasileiros aceitam quase tudo", critica. Segundo ele, a arrogância das
classes dominantes brasileiras é tão grande que elas não precisam mais do
consenso. "Basta-lhes a resignação. Num consenso, é necessário negociar.
Na resignação, não há conflito. Isso é mau: em sociedades democráticas estarmos
a contar com a resignação das pessoas para governar o país." Estrela do
Fórum Mundial, realizado este ano em Porto Alegre, Boaventura acha que está na
hora de as ciências sociais brasileiras se desumbigarem, olhando
para o resto da América Latina e para Portugal, em vez de ficarem copiando
franceses e americanos. "Quando a gente tenta imitar, imita sempre mal e
com atraso."
CRISTIANE
COSTA
- O senhor ficou ainda mais famoso no Brasil quando deu uma bronca no presidente Fernando
Henrique Cardoso, em 1995, em plena solenidade do doutoramento honoris causa em
Coimbra. Desde então tem falado com ele?
- Sim,
várias vezes. Fernando Henrique aceitou muito desportivamente o meu comentário.
Meu texto foi, inclusive, publicado num livro em homenagem ao presidente. Mas
temos que saber se as minhas previsões estavam certas ou não.
- E o que o senhor acha?
- Eu acho que estavam certas. Tenho acompanhado de perto a vida política e social de seu
país. Atualmente, o que mais me surpreende no Brasil é a falta de contestação
social a coisas como essa ameaça de apagão e racionamento de energia. Parece
que hoje em dia os brasileiros aceitam quase tudo.
- Qual seu diagnóstico?
- Isso é muito negativo porque as pessoas ficam inseguras e quem está inseguro não tem
capacidade de atuação política. Ficam muito preocupadas com o que vai acontecer
amanhã ou depois, com os bifes que têm na geladeira, os filhos presos nos
ascensores. Criar essa insegurança no cotidiano contribui, de alguma maneira,
para despolitizar ainda mais as populações e para impedir que haja contestação
social.
Representantes do governo chegaram a afirmar que não haverá contestação porque
o brasileiro se acostuma com tudo.
- E é isso mesmo. A arrogância das classes dominantes brasileiras hoje é tão grande que
elas não precisam do consenso das pessoas. Basta-lhes a resignação. Num
consenso, é necessário negociar. Na resignação não há realmente conflito.
Admite-se que as pessoas têm que se sujeitar e elas se sujeitam porque não há
alternativa. Isso é mau: em sociedades democráticas, estarmos a contar com a
resignação das pessoas para governar um país. Não fico surpreendido com o que
diz o burocrata, mas com o fato de que, aparentemente, ele tenha razão.
- A esquerda estaria comendo mosca?
- Todo esse silêncio não é porque o brasileiro seja cordial, mas porque os partidos de
oposição me parecem completamente desmobilizados para as lutas cotidianas,
procurando apenas intervir nos interstícios e nas margens do sistema, com
pequenas declarações, mas não mobilizando a população. Essa é uma luta que
tinha todas as condições de criar aquilo que às vezes o próprio presidente diz:
que não há oposição à altura dele. Aqui está realmente um motivo que afeta a
todos os cidadãos.
- O senhor julga que o processo de despolitização é um fenômeno nacional ou global?
- Sem dúvida é um fenômeno mundial, que ganhou força na década de 80, mas também
nacional. Aqui no continente, particularmente, nós tivemos transições feitas
em nome da democracia, mas que não puseram em questão o modelo de sociedade que
estava em vigor, de modernização sem participação. Há continuidades
perturbadoras, como a modernização através de uma aplicação radical das
terapias do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial - e o Brasil foi
um dos que mais ortodoxamente seguiram a receita, sempre contando que o povo
seja cordial, não resista, não faça contestação.
- E por que ela não acontece?
- A contestação mais agressiva sempre acontece nos momentos de expansão da
economia. As pessoas precisam ter sua retaguarda assegurada. Agora, a
insegurança é tanta que, quando ela entra no cotidiano, vira uma metáfora.
- De que o risco de apagão seria uma metáfora?
- O apagão é uma metáfora da falta de energia da sociedade. No fundo, não é apenas a
energia elétrica que se apaga, são as pessoas que estão viradas para dentro, se
apagando, quando fogem da participação.
- Seu livro premiado com o Jabuti fala desse descaso, não?
- A crítica da razão indolente retoma um conceito de Leibniz, que se insurgiu
contra a idéia de que tudo é dado pelo destino e só nos cabe cumpri-lo. Se o
que tiver de acontecer acontece independentemente do que fizermos, é preferível
não fazer nada, não cuidar de nada e gozar apenas o prazer do momento. Com
isso, não há emancipação social possível.
- Quando será lançado o segundo volume da série, aquele que trata mais diretamente do
Brasil.
- No segundo semestre. O direito da rua: ordem e desordem nas sociedades subalternas é uma análise da ordem e do direito a nível local. Ele contém a íntegra de meu trabalho de doutoramento, em Yale, feito numa favela do Rio de Janeiro, junto com trabalhos realizados em Cabo Verde, Colômbia e Moçambique.
- Quanto tempo o senhor viveu no Brasil?
- Passei um ano, sendo que cinco meses na favela do Jacarezinho. Isso em 1970, um período
muito difícil por causa da ditadura. Posso dizer que foi a primeira vez que vi
o mundo real, da desigualdade, da exclusão social, mas também da dignidade das
classes oprimidas. Meu objetivo era organizar uma pesquisa alternativa às duas
visões que dominavam nas ciências sociais americanas. De um lado, as favelas
eram tidas como antros criminosos ou então, sob uma ótica muito romântica, como
um paraíso. O que procurei mostrar foi que essas comunidades tinham a sua
ordem, o seu direito, que não era o oficial. Era engraçado, porque na época só
os americanos faziam esse tipo de pesquisa. E as pessoas perguntavam qual era o
meu negócio. Afinal, português tinha que querer montar um negócio, qualquer
coisa de secos e molhados, não uma tese de doutoramento.
- E os demais volumes?
- O terceiro também está praticamente pronto e se chamará Os trabalhos de Atlas: regulação e emancipação na Redopolis. Ele mostra como a globalização dá origem a diferentes direitos, conhecimentos e poderes. O quarto volume, O milênio órfão: para um futuro da cultura política é uma reflexão mais profunda sobre a teoria política. Eles são desdobramentos de um
grande livro, de 600 páginas, que publiquei nos Estados Unidos em 1985, Toward a new common sense: law, science and politics in the paradigmatic transition.
- Qual seu balanço do encontro de Porto Alegre, de que foi uma das estrelas?
- Acho que foi realmente um momento extraordinário de agregação de movimentos
alternativos. Conseguimos demonstrar que o pensamento único não é único e que
não éramos simplesmente contra a globalização - éramos a favor de uma
globalização alternativa. Não estamos a pedir uma utopia, mas pequenas
transformações que só têm um objetivo: tornar o mundo menos
confortável para o capitalismo global. Também não queremos apenas criticar, mas
apresentar alternativas.
- Como a globalização contra-hegemônica?
- A alternativa certamente não é fechar-se no espaço nacional. O momento atual tem
como característica o fato de tudo se dar em termos de alianças globais:
globais no topo, a globalização neoliberal, e globais na base, aquilo que se
pode chamar de globalização contra-hegemônica.
- Outro conceito que o senhor gosta de usar é o de democracia de baixa intensidade. O
Brasil é um exemplo?
- Esta caricatura de democracia de baixa intensidade que está a se ver não tem
condições de sustentabilidade. Eu, que vivi durante alguns anos em período de
fascismo, nunca critico a democracia por ser uma fraude, critico por ser pouca.
Eu quero é mais. Quero no sistema político, nas famílias, nas fábricas, nas
ruas, nas comunidades. Quero a democracia sem fim. A democracia hoje está
delimitada a um espaço político do Estado.
- Qual a conseqüência disso?
- O conceito de democracia tornou-se totalmente compatível com o capitalismo.
Não só compatível como virou sua outra face. Isso é uma coisa absolutamente
nova. Os avanços democráticos foram sempre arrancados ao capital. A luta era
por direitos econômicos e sociais, o significava tirar dos ricos para dar aos
pobres. Mas o capitalismo é totalmente hostil à redistribuição. Por isso, só
onde podia haver distribuição podia haver democracia - e portanto poucos eram
países eram democráticos. Hoje, todos têm o dever de ser democráticos, se não
ficam sem receber os fundos do Banco Mundial.
- Por quê?
- Porque o capitalismo conseguiu eliminar as virtuais capacidades redistributivas da
democracia. Se elas não existem, a democracia deixa de ser um problema para se
tornar fundamental ao capital, porque se torna sinônimo de um Estado fraco e
legítimo. É disso que o capitalismo internacional precisa.
- Novamente qual seria a alternativa?
- Os sistemas alternativos de produção, as chamadas organizações econômicas
populares. A produção feita de forma não capitalista, como as cooperativas, é
uma diferença que está a emergir. Há também outras formas de comércio, o
chamado comércio justo. O objetivo não é irmos para o livre comércio, free trade, mas para o comércio justo, o fair trade, que também é global.
- Como funciona?
- É um comércio em que as mercadorias são produzidas com um salário justo, em
condições ecológicas equilibradas, em que os sindicatos podem efetivamente
atuar. Seus produtos são realizados dentro dos parâmetros laborais mínimos.
Podem eventualmente ser mais caros - agora detêm apenas 0,1% do mercado mundial
-, mas é algo que está crescendo. Este ano, no México, será criado um selo de
comércio justo. Esse também é um comércio global. Por exemplo, agora querem
produzir umas camisetas de algodão orgânico, como no México não há, estão a
importá-lo de uma cooperativa de índios do Peru.
- Seu livro conquistou o primeiro lugar na categoria Ciências Humanas e Educação do Jabuti.
Mas o que se verifica normalmente é que nem a literatura nem as ciências
sociais brasileiras e portuguesas se comunicam. O senhor é uma exceção, assim
como Saramago. A que se deve isso?
- Seria muito fácil buscar as razões na história colonial e no processo de
descolonização. Mas isso já foi há tantos anos, que já não faz sentido nenhum.
Uma aliança entre as duas literaturas e as duas ciências sociais, trazendo para
esse espaço as africanas, se beneficiaria de uma língua comum. Mas infelizmente
não é assim. Para ter meus livros distribuídos no Brasil, tenho que os publicar
duas vezes, numa editora portuguesa e numa editora brasileira. Até há pouco
tempo, eu tinha que alterar o meu português, fazer quase que uma tradução, para
ter meus livros publicados no Brasil. Felizmente, este meu último livro, que
está a entrar na terceira edição, foi publicado em português de Portugal, ao
contrário de Pela mão de Alice.
- Por que o Brasil não tem olhos para Portugal?
- Acho isso inexplicável. Quando venho ao Brasil, fico ainda hoje surpreendido com a
intensidade com que se discutem os autores franceses e americanos. Estudam-se
esses autores como se eles tivessem estado a trabalhar com a realidade deste
país, quando não foi este o caso. Temos uma grande responsabilidade: criar
teorias, adaptadas a nossos países, tal e qual eles fizeram. Em relação à cultura
francesa, que está hoje em recessão, os brasileiros são mais papistas do que o
papa. E o mesmo em relação aos americanos, ficam por aí discutindo paradigmas
em crise. Quando a gente tenta imitar, imita sempre mal e com atraso.
- A cultura brasileira também se comunica muito pouco com a do resto da América Latina.
- É engraçado. O Brasil tem uma plêiade de intérpretes magníficos, como Gilberto
Freyre, Florestan Fernandes, Sergio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., Celso
Furtado, Darcy Ribeiro. Mas só Darcy e Manuel Bonfim olharam para o continente.
A maioria olhou para o Brasil e fechou-se. É preciso desumbigar um pouco as ciências sociais brasileiras. Sem grande retórica, sem grandes declarações de "países irmãos". Antigamente, meus colegas,
quando iam de férias para a Europa, nem paravam em Lisboa, iam direto para Paris. Agora já vêm a Coimbra, dão seminários, e depois seguem para lá. Já é alguma coisa.
- Mas esse desconhecimento é de mão dupla: a obra dos cientistas sociais brasileiros
também não tem grande repercussão em Portugal.
- Esse problema de ter que editar o livro duas vezes, uma no Brasil outra em Portugal,
atrapalha muito. Mas está a se criar uma aproximação. Fundei em 1990 a
Associação Luso-Afro-Brasileira de Ciências Sociais, cujo sexto congresso
acontecerá próximo ano no Iuperj. É uma forma de aproximar as nossas cabeças
sem essa retórica de países irmãos.
09/11/2007
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